quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Os heróis mortos do Rock in Rio

Um dos aspectos mais característicos do Rock in Rio é sua contradição. A começar pelo nome, já que na maioria das vezes não ocorreu de fato no Rio de Janeiro. Pior que isso, certas apresentações ficaram na história por não terem relação alguma com o rock: Ivan Lins?! Moraes Moreira?! Lisa Stanfield?! Carlinhos Brown?! Rihanna?! Shakira?! Cláudia Leitte?! Ivete Sangalo?! Sandy & Junior?!!!!

Cazuza e Frejat, legítimos representantes do cenário
do rock nacional na década de 80
A edição desse ano procurou celebrar os trinta anos de organização do festival. No primeiro dia houve um show comemorativo com a presença, entre outros, de Roberto Frejat, que ficou conhecido como vocalista do Barão Vermelho, banda que conquistou a fama com sua apresentação no Rock in Rio 85, liderada pelo então vocalista Cazuza. Ele foi diagnosticado com o vírus da AIDS em 1987, fato que revelou publicamente em 1989, vindo a morrer em 1991, aos 32 anos.[1]

Cazuza cantava: “Meus heróis morreram de overdose”. É verdade. Essa é outra contradição, não do festival, mas do próprio rock: os roqueiros não se tornam heróis por suas virtudes, e sim por seus vícios. E ele mesmo, conhecido por sua vida desregrada e tresloucada, ilustraria a vida de rock star – a morte precoce (veja aqui uma lista), o uso das drogas (quase universal) e, acima de tudo, o estilo de vida transgressor (que está na base de ambos).

É certo que existe um aspecto “transgressor” próprio da arte, no sentido de trazer inovação e rompimento com padrões já explorados e dominados por artistas anteriores. Aliás, desde meados do século 19 (ou seja, na arte “moderna” e na arte “contemporânea”) esse aspecto tem sido tomado como o principal ou único critério artístico. Além disso, o rock é o estilo musical baby boomer[2], isto é, está no seu DNA a desilusão e ruptura com os padrões tradicionais. Nascido e amadurecido nas décadas da revolução cultural que virou o Ocidente de cabeça para baixo, o rock parece incapaz de se contentar em ser apenas um estilo musical: anseia ser um estilo de vida, sintetizado no dístico “sexo, drogas e rock ‘n’ roll”.

Os “heróis” do rock são exatamente aqueles que mergulharam de cabeça na autodestruição. Alguns, inclusive, se tornaram mais memoráveis por seu comportamento que por seu talento; e outros tantos parecem querer compensar a completa ausência de talento com o péssimo comportamento que movimenta a roda da fama e fortuna roqueira.

O mais grave é que vivemos numa cultura de celebridades, e qualquer um que consiga seus quinze minutos de fama ganha o direito de expressar suas opiniões sobre os mais variados assuntos, como se a superexposição na mídia o transformasse automaticamente num modelo a ser imitado – nos divórcios, roupas indecentes, promiscuidade, uso de drogas, desrespeito às autoridades. Alçados à condição de ídolos, os artistas ditam os valores e costumes de seus fãs.

Um artista é inseparável de sua obra, pois a arte sempre provém do mais íntimo de seu coração. Contudo, podemos distingui-los em nossa avaliação. É possível admirar uma letra, uma voz, um solo de guitarra, uma canção, sem com isso estar obrigado a dar aprovação incondicional à vida pessoal, valores e comportamento do artista que os produziu.[3] Mas o cristão procura lidar com a cultura ao seu redor de maneira humilde e cuidadosa. E reconhece que somos moldados em certa medida por aqueles com quem convivemos e conversamos, e que dificilmente conseguimos escapar de sermos influenciados por quem admiramos.[4] Por exemplo, ainda que um fã de Freddie Mercury não vá se tornar homossexual por causa dele, provavelmente se tornará mais condescendente com o homossexualismo; assim como fãs de Marcelo D2 tenderão a relativizar a gravidade do uso da maconha, ainda que se mantenham abstêmios por toda sua vida.

A criatividade e a imaginação necessárias às artes são dons do Criador, distribuídos generosamente sobre bons e maus indistintamente; e espelham algo da própria natureza divina no homem.[5] Mas o pecador usa esses dons para a sua própria glória, distorcendo seu propósito criacional. O resultado desse processo foi anunciado muito tempo atrás, e continua fazendo vítimas até hoje.[6]

E não há nada de célebre, admirável ou heroico nisso. Só triste.


[1] A presença do Queen (sem dúvida a banda principal do Rock in Rio 85) com o vocalista Adam Lambert também é celebrativo dos 30 anos de Rock in Rio. À semelhança de Cazuza, o líder e vocalista original Freddie Mercury foi diagnosticado com o vírus da AIDS em 1987, fato que somente revelou publicamente um dia antes de morrer, em 1991 (aos 45 anos). Houve ainda mais duas homenagens: uma a Cássia Eller, que se apresentou no Rock in Rio III, em 2001, mesmo ano da sua morte (aos 39); e outra a Raul Seixas, que morreu em 1989 (aos 44), sem nunca ter cantado no festival.
[2] Baby Bommers é o termo que designa a geração nascida nos anos logo após o término da 2ª Grande Guerra (de 1946 a 1960), caracterizada pela cultura de massa, idealismo ativista, materialismo consumista e ruptura com os valores da geração anterior. Saiba mais aqui.
[3] É interessante observar como os descendentes de Caim se tornaram celebridades de seus dias, inclusive na música; porém, não negaram o legado ímpio de seu antepassado, célebre pelo assassinato do próprio irmão (Gênesis 4.17-23). Sem querer forçar a comparação, o apóstolo Paulo citou os escritos de  Epimênides (600 a.C.) e Aratus (315-240 a.C.), filósofos gregos pagão (leia Atos 17.28 e Tito 1.12-13). João Calvino também era um profundo conhecedor dos clássicos.
[4] Veja estas advertências do sábio Salomão sobre as más influências: Provérbios 9.6; 13.20; 22.24-25; saber que ele mesmo se deixou levar pelas más influências de suas esposas idólatras somente confere ainda mais peso aos seus conselhos. O apóstolo Paulo também aborda a questão em 1 Coríntios 15.33.
[5] Em outras palavras, são parte da imagem de Deus na humanidade, mantidos pela graça comum; veja Gênesis 1.26 e Mateus 5.45.
[6] Desejar receber a glória devida somente a Deus causou a queda de Adão e teve como consequência a entrada da morte no mundo; cf. Gênesis 3.2-6.

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