Os cinemas de todo o país estão vendendo mais lenços que
pipocas com o grande sucesso de “Como eu era antes de você” (Me before you, 2016). O filme conta a
história de Will Trainor (Sam Clafin), um jovem muito rico e aventureiro que fica
tetraplégico. O rapaz mergulha em amargura e cinismo, até que a família
contrata como cuidadora a doce e meio simplória Louisa Clark (Emilia Clarke).[1]
Como sugere o título, essas duas vidas tão opostas serão profundamente tocadas
pela relação que constroem.
*SPOILERS ABAIXO!*
Só de ler a sinopse já fica totalmente previsível que ambos vão
se apaixonar um pelo outro.[2] Porém, o trailer antecipa que o filme apenas finge
ser uma comédia romântica, mas é na verdade um melodrama. Mesmo reconhecendo que a
presença de Lou trouxe alegria e significado à vida, Will se mantém decidido a terminar sua
vida por meio de suicídio assistido. Na verdade, parece que conhece-la serviu apenas
para confirmar que jamais poderia se conformar com a existência incompleta e
dependente que o espera.
O título original do filme (“Me before you”) nos oferece um
trocadilho, perdido na tradução. É assim que Will vê o mundo, ele mesmo antes
de todo o resto. Sua decisão de cometer suicídio é completamente egoísta e
ensimesmada. Mergulhado em autocomiseração pelo potencial de realizações pessoais
que perdeu, não leva em consideração nem as pessoas que o amam e cuidam,
inclusive Lou, cujo amor ele aparentemente corresponde. Seu discurso de que não
deseja ser um fardo para aqueles que o amam não é motivado pelo amor, mas pelo
orgulho que o impede de ser dependente do amor dos outros.
A cena final mostra Lou depois de Will. Ele deixa para ela muito dinheiro e uma carta póstuma onde a incentiva a “viver corajosamente”. O que isso supostamente deveria significar? A vida sem maiores ambições que ela levava anteriormente receberia dose extra de coragem por ter conhecido um suicida? Ou o dinheiro lhe daria essa ousadia? A decisão dele de suicidar-se foi um exemplo de coragem? E o que dizer de milhares de pessoas em situação semelhante que persistem em viver a despeito de tudo (e que nem vivem num castelo rodeado de cuidados e equipamentos caríssimos), falta-lhes coragem para suicidar-se? Será preferível morrer que se tornar dependente de outras pessoas para viver? Somente pessoas sadias são capazes de viver dignamente? Receber assistência para morrer é melhor que receber assistência para viver? Deveria ela suicidar-se também caso a vida se tornasse sem graça? Será que se o dinheiro que ele deixou acabasse a vida dela já seria sem graça o suficiente para que ela buscasse o suicídio? Ou apenas a tetraplegia é maior que a coragem? Quem sabe a paraplegia também, e por que não a demência, a cegueira ou a depressão grave? Que tal feiura?
Cartaz de ativistas dos direitos dos deficientes: "Nossas vidas não são trágicas, patéticas e dignas de pena. Esse filme o é" |
Deficientes físicos, familiares e ativistas[3]
acusam o filme de romantizar a morte como melhor saída para um grupo que já
enfrenta obstáculos demais para viver. É certo que vivemos em tempos de
“politicamente correto”, e as pessoas parecem sensíveis demais sobre tudo,
dispostas a transformar pequenos detalhes em Bastilhas a serem tomadas. Mas, a despeito dessa hipersensibilidade moderna, o filme
realmente trata com uma naturalidade forçada e imoral de um tema muito grave. Especialmente
levando em conta que alguns países já têm legislado sobre o suicídio assistido.
O primeiro país a legalizar o suicídio clinicamente
assistido foi a Holanda, em 1994. Uma lei permitiu que os médicos ajudem a morrer
o paciente enfrenta um sofrimento insuportável sem perspectiva de melhoria. A
lei foi justificada com casos de câncer terminal, mas hoje, 25% dos
requerimentos de suicídio assistido são feitos por pacientes que poderiam ter
vivido por meses ou mesmo anos. Muitos consideram como fardos insuportáveis as
restrições que a doença ou o tratamento lhe imporão, outros não confiam que os
cuidados paliativos lhe possibilitarão uma morte sem sofrimento no momento
adequado. Recentemente, uma holandesa de 20 anos recebeu autorização por sofrer
de estresse pós-traumático devido a abusos sexuais durante a infância. Em
alguns casos, o sofrimento que justifica o pedido consiste basicamente em estar
desgostoso por causa de um luto, da solidão ou da velhice. Na Bélgica, que tem
legislação semelhante, um homem gay
está requerendo suicídio assistido porque sofre grande angústia por sua homossexualidade, apesar de 17 anos de psicoterapia.
As leis desses poucos países refletem uma mentalidade muito
mais abrangente e difusa. Desde sempre o ser humano anseia por autonomia.[4]
Contudo, a morte sempre foi uma visitante indesejada, nos lembrando do quanto
somos finitos e limitados.[5]
Apesar de todos os avanços da medicina, ela insiste em chegar nas horas mais
impróprias. O suicídio assistido vem oferecer a manutenção da ilusão de autonomia,
agora sobre a morte.
Voltando ao filme, a autora afirma que a história apenas tenta
ajudar a diminuir a carga de julgamentos que pesa sobre essas pessoas,
apresentando a questão de maneira neutra. Na verdade, encontramos a perspectiva
da autora nos pais de Will que respeitam apaticamente sua decisão; na outra
ponta, as tentativas atrapalhadas de Lou de fazer Will voltar atrás representam
a ingenuidade do senso comum, que rejeita o suicídio. Não há neutralidade, há
propaganda – enganosa.
O sofrimento, a dor, a perda e o vazio da vida não podem ser remediados buscando a morte, mas buscando aquele que é a fonte da vida.[6] Mas somente o encontra quem está disposto a se entregar a um amor que não poderá pagar.
[2] O cinema francês tem pelo menos duas opções mais
interessantes no tema. “O escafandro e a borboleta” (2007) e “Os intocáveis”
(2011) encontram a riqueza da existência na vida interior e nos relacionamentos, transcendendo as realizações materiais.
[3] A hashtag #MeBeforeEuthanasia viralizou nas redes sociais, assim como este vídeo, lançado pela Center For Disability Rights.
[4]
Essa foi a oferta tentadora na qual Adão e Eva caíram: “Vocês poderão definir
por si mesmos o bem e o mal” (cf. Gênesis 3.4-5).
[5] A
morte humana é castigo direto do Criador pela desobediência do primeiro casal (veja
Gênesis 2.17; Romanos 5.12). Contudo, o sábio Salomão afirma que defrontar-se
com ela serve também como oportunidade para refletir sobre a vida (Eclesiastes
7.2).
[6] A Bíblia conta como um homem que era tão bem sucedido como Will perdeu tudo, mas continuou buscando suas respostas em Deus (Leia o Livro de Jó).
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