quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Coringa e o papel da maldade louca

Normalmente, um supervilão existe como contraposição ao bem, personalizado no super-herói. Agora, com Coringa (2019), o diretor Todd Phillips tenta entregar um vilão sem seu famoso antagonista, Batman.[1] Coringa é um bom filme de drama, e um bom filme de super-herói (isto é, de vilão de super-herói), adaptando com criatividade a história e o visual das HQs para outro veículo, usando com eficiência as técnicas cinematográficas. Sua fotografia amarelada, a câmera tremida, a câmera lenta, os close-ups estourados, os plot twists, a performance sem sutilezas de Joaquin Phoenix tudo intensifica a experiência de acompanhar ladeira abaixo uma mente doentia.[2]

Para não desrespeitar a extensa folha corrida do supervilão nos quadrinhos, onde desde 1940 é o insano arqui-inimigo do Batman, completamente imprevisível, sem origem certa nem motivações racionais, mas com um bizarro senso de humor, a estratégia foi contar uma história de origem, com a óbvia vantagem de ser o protagonista do filme e não ter o antagonismo de um mascarado de orelhas pontudas para atrapalhar seus planos malignos.

O “Príncipe palhaço do crime” já foi vivido por Jack Nicholson (Batman, 1989) como um chefe de quadrilha psicótico, motivado muito claramente por uma vingança pessoal contra o Homem Morcego por tê-lo desfigurado. Louco, ele mata desafetos com pegadinha de aperto de mão eletrificado, envenena aleatoriamente os cidadãos sem exigir dinheiro, saca um revólver de bandeirinha (“bang”) e aciona um saco de risadas em sua morte. Um Coringa para a Geração X, bem apropriado para encerrar uma década que ficou marcada pelo expressivo aumento no número de serial killers, crimes violentos etráfico de drogas nas grandes cidades.

Outra encarnação foi pelo talento de Heath Ledger (O Cavaleiro das Trevas, 2008). O próprio personagem conta três diferentes histórias explicar sua aparência, brincando com a ausência de uma origem que justifique sua existência e loucura. Entre atos de violência e insanidade, descobrimos que esse Coringa, menos divertido e mais maníaco que a versão anterior, tem uma motivação clara e ideológica: quer provar sua tese de que todos os cidadãos de bem são iguais a ele mesmo, bastando apenas um dia mau para empurrá-los para o abismo de crime e loucura. A geração Y – que assistiu as torres gêmeas do World Trade Center desabarem em 11 de setembro de 2001, a mando de um louco chamado Osama Bin Laden – agora tinha um Coringa para chamar de seu![3]

Nem tão divertido, nem tão mau assim, o Arthur Fleck de Phoenix é apenas um homem doente; uma vítima da vida, das pessoas, do sistema; um pobre coitado como tantos outros. Um Coringa sob encomenda para a Geração Z, cujo maior pavor é sofrer bullying na escola e shaming nas redes sociais; cuja maior ameaça é alguém entrar atirando num shopping, escola ou cinema; cujo maior ato de virtude está em viralizar uma hashtag que mobilize um protesto de rua em favor da causa da vez. Em certo momento do filme, imaginei Greta Thunberg, a adolescente ecoativista que discursou na ONU, se juntando a Arthur num coro: “Vocês roubaram os meus sonhos!”

De todo modo, supervilões são sobre a maldade humana, e o filme não ignora que ela está espalhada por todo lado, pronta para se manifestar: nos investidores, só precisa de uns goles a mais e de uma moça num metrô vazio; no bilionário, basta uma ameaça ao seu futuro político; na multidão insatisfeita, basta uma fagulha. O Coringa de 2008 não estava de todo errado.

É claro que esse argumento fortalece a tese daqueles que protestaram contra a exibição do filme, temendo que incentivasse assassinos em massa – afinal, incels frustrados cheios de raiva podem só precisar de um Coringa vítima de bullying para saírem matando pessoas numa escola ou num cinema. Porém, a verdade é que essa pessoa poderia perfeitamente usar como desculpa uma comédia romântica, ou uma canção pacifista dos Beatles, ou um versículo bíblico tirado do contexto. Não se erradia o mal humano pintando o mundo de rosa.[4]

Mas, ao contrário do que inicialmente parece, o diretor não cai na armadilha da injustiça social como explicação pronta e justificativa fácil para a queda no crime. Observe que os colegas de Arthur recebem o mesmo salário pela mesma atividade ingrata, e sua vizinha de corredor luta para criar uma filha sozinha no mesmo bairro violento, mas nenhum deles toma a mesma rota da maldade insana. Arthur obviamente já carrega dentro de si o monstro que virá a ser, apenas contido na jaula interior pelos sete medicamentos “tarja-preta” que ele tomava diariamente e por uma frágil estrutura de amparo social (família, emprego, assistência governamental), que vai se desfazendo até a metade do filme.

Diante de um retrato do mal que inclui a maldade que temos, a maldade com que convivemos e até a maldade que sofremos, lembramos as palavras duras do apóstolo Paulo: “Não há quem faça o bem, nem um sequer!”. [5] Contudo, nossa sociedade secularizada prefere rejeitar a explicação cristã para a realidade do mal humano – o pecado –, agarrando-se à explicação materialista disponível mais razoável. E, nesse sentido, o Coringa (em todas as versões) é um SUPER vilão. Seu superpoder é sua louca maldade – a justificativa mais confortável para o mal que habita em nós. Loucos são ótimos vilões porque sua condição é médica, o que os torna irresponsáveis; são ótimos porque sua irracionalidade os distancia de nós, pessoas normais e fundamentalmente boas. Vilões loucos são um alívio-não-cômico para nossos corações cheios de maldade mal contida.[6]

Ponha uma cara feliz! Afinal, você é uma pessoa normal e boa, certo? E também se não for, sorria: todo mundo é um pouco louco, mesmo.


[1] Não é a primeira tentativa, mas é bem superior a "Venom" (2018), centrado no supervilão alienígena inimigo do Homem-Aranha, que não aparece no filme.
[2] Como todos os críticos já notaram, o filme é quase um pastiche de “Taxi Driver” (1976) e “O Rei da Comédia” (1983), de Martin Scorcese. Mas a quantidade de citações indiretas a ambos (a escalação de Robert De Niro é a mais evidente) nos leva a relevar a impressão de plágio pela certeza de homenagem escancarada.
[3] Cesar Romero encarnou a primeira versão do Coringa nos cinemas (Batman, 1966); porém, tratava-se de uma produção baseada na série de TV, sem nenhuma profundidade no personagem, que era apenas um bufão. E não: não houve Coringa algum nos cinemas em 2016.
[4] Muitas críticas, principalmente nos EUA, avaliaram que o roteiro induz a uma empatia ou até simpatia com um sujeito perturbado e assassino, numa sociedade marcada por assassinatos em massa. As forças de segurança americanas chegaram a se mobilizar preventivamente no dia da estreia, até com agentes disfarçados nos cinemas. O filme foi cercado de polêmicas mesmo antes da estreia.
[5] Paulo em sua carta aos Romanos, 3.9-19, argumenta que todos os seres humanos são igualmente pecadores e culpados perante seu Criador; isto está em harmonia com o ensino de Jesus de que as mais variadas formas de pecados têm sua origem comum no “coração”, isto é, no mais íntimo de cada ser humano (Marcos 7.21-23).
[6] Essa justificativa para a maldade é recorrente nas novelas da Globo, cujos vilões constantemente apresentam sinais de loucura no final da trama.

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