Normalmente, um supervilão existe como contraposição ao bem,
personalizado no super-herói. Agora, com Coringa
(2019), o diretor Todd Phillips tenta entregar um vilão sem seu famoso antagonista,
Batman.[1]
Coringa é um bom filme de drama, e um bom filme de super-herói (isto é, de
vilão de super-herói), adaptando com criatividade a história e o visual das HQs
para outro veículo, usando com eficiência as técnicas cinematográficas. Sua
fotografia amarelada, a câmera tremida, a câmera lenta, os close-ups estourados, os plot
twists, a performance sem
sutilezas de Joaquin Phoenix – tudo intensifica a experiência de acompanhar ladeira abaixo uma mente
doentia.[2]
Para não desrespeitar a extensa folha corrida do supervilão nos
quadrinhos, onde desde 1940 é o insano arqui-inimigo do Batman, completamente
imprevisível, sem origem certa nem motivações racionais, mas com um bizarro senso
de humor, a estratégia foi contar uma história de origem, com a óbvia vantagem
de ser o protagonista do filme e não ter o antagonismo de um mascarado de
orelhas pontudas para atrapalhar seus planos malignos.
O “Príncipe palhaço do crime” já foi vivido por Jack
Nicholson (Batman, 1989) como um
chefe de quadrilha psicótico, motivado muito claramente por uma vingança
pessoal contra o Homem Morcego por tê-lo desfigurado. Louco, ele mata desafetos
com pegadinha de aperto de mão eletrificado, envenena aleatoriamente os
cidadãos sem exigir dinheiro, saca um revólver de bandeirinha (“bang”) e aciona
um saco de risadas em sua morte. Um Coringa para a Geração X, bem apropriado
para encerrar uma década que ficou marcada pelo expressivo aumento no número de
serial killers, crimes violentos etráfico de drogas nas grandes cidades.
Outra encarnação foi pelo talento de Heath Ledger (O Cavaleiro das Trevas, 2008). O próprio
personagem conta três diferentes histórias explicar sua aparência, brincando
com a ausência de uma origem que justifique sua existência e loucura. Entre
atos de violência e insanidade, descobrimos que esse Coringa, menos divertido e
mais maníaco que a versão anterior, tem uma motivação clara e ideológica: quer
provar sua tese de que todos os cidadãos de bem são iguais a ele mesmo, bastando
apenas um dia mau para empurrá-los para o abismo de crime e loucura. A geração
Y – que assistiu as torres gêmeas do World Trade Center desabarem em 11 de
setembro de 2001, a mando de um louco chamado Osama Bin Laden – agora tinha um Coringa
para chamar de seu![3]
Nem tão divertido, nem tão mau assim, o Arthur Fleck de
Phoenix é apenas um homem doente; uma vítima da vida, das pessoas, do sistema;
um pobre coitado como tantos outros. Um Coringa sob encomenda para a Geração Z,
cujo maior pavor é sofrer bullying na
escola e shaming nas redes sociais;
cuja maior ameaça é alguém entrar atirando num shopping, escola ou cinema; cujo
maior ato de virtude está em viralizar uma hashtag
que mobilize um protesto de rua em favor da causa da vez. Em certo momento do
filme, imaginei Greta Thunberg, a adolescente ecoativista que discursou na ONU,
se juntando a Arthur num coro: “Vocês roubaram os meus sonhos!”
De todo modo, supervilões são sobre a maldade humana, e o
filme não ignora que ela está espalhada por todo lado, pronta para se
manifestar: nos investidores, só precisa de uns goles a mais e de uma moça num
metrô vazio; no bilionário, basta uma ameaça ao seu futuro político; na
multidão insatisfeita, basta uma fagulha. O Coringa de 2008 não estava de todo
errado.
É claro que esse argumento fortalece a tese daqueles que protestaram
contra a exibição do filme, temendo que incentivasse assassinos em massa –
afinal, incels frustrados cheios de
raiva podem só precisar de um Coringa vítima de bullying para saírem matando pessoas numa escola ou num cinema.
Porém, a verdade é que essa pessoa poderia perfeitamente usar como desculpa uma
comédia romântica, ou uma canção pacifista dos Beatles, ou um versículo bíblico
tirado do contexto. Não se erradia o mal humano pintando o mundo de rosa.[4]
Mas, ao contrário do que inicialmente parece, o diretor não
cai na armadilha da injustiça social como explicação pronta e justificativa
fácil para a queda no crime. Observe que os colegas de Arthur recebem o mesmo
salário pela mesma atividade ingrata, e sua vizinha de corredor luta para criar
uma filha sozinha no mesmo bairro violento, mas nenhum deles toma a mesma rota
da maldade insana. Arthur obviamente já carrega dentro de si o monstro que virá
a ser, apenas contido na jaula interior pelos sete medicamentos “tarja-preta”
que ele tomava diariamente e por uma frágil estrutura de amparo social
(família, emprego, assistência governamental), que vai se desfazendo até a
metade do filme.
Diante de um retrato do mal que inclui a maldade que temos,
a maldade com que convivemos e até a maldade que sofremos, lembramos as palavras
duras do apóstolo Paulo: “Não há quem faça o bem, nem um sequer!”. [5]
Contudo, nossa sociedade secularizada prefere rejeitar a explicação cristã para
a realidade do mal humano – o pecado –, agarrando-se à explicação materialista disponível
mais razoável. E, nesse sentido, o Coringa (em todas as versões) é um SUPER vilão.
Seu superpoder é sua louca maldade – a justificativa mais confortável para o mal que
habita em nós. Loucos são ótimos vilões porque sua condição é médica, o que os
torna irresponsáveis; são ótimos porque sua irracionalidade os distancia de
nós, pessoas normais e fundamentalmente boas. Vilões loucos são um alívio-não-cômico
para nossos corações cheios de maldade mal contida.[6]
Ponha uma cara feliz! Afinal, você é uma pessoa
normal e boa, certo? E também se não for, sorria: todo mundo é um pouco louco, mesmo.
[2] Como
todos os críticos já notaram, o filme é quase um pastiche de “Taxi Driver”
(1976) e “O Rei da Comédia” (1983), de Martin Scorcese. Mas a quantidade de
citações indiretas a ambos (a escalação de Robert De Niro é a mais evidente)
nos leva a relevar a impressão de plágio pela certeza de homenagem escancarada.
[3] Cesar Romero encarnou a primeira versão do Coringa nos cinemas (Batman,
1966); porém, tratava-se de uma produção baseada na série de TV, sem nenhuma profundidade
no personagem, que era apenas um bufão. E não: não houve Coringa algum nos
cinemas em 2016.
[4] Muitas
críticas, principalmente nos EUA, avaliaram que o roteiro induz a uma empatia
ou até simpatia com um sujeito perturbado e assassino, numa sociedade marcada por assassinatos em massa. As forças de
segurança americanas chegaram a se mobilizar preventivamente no dia da estreia,
até com agentes disfarçados nos cinemas. O filme foi cercado de polêmicas mesmo antes da estreia.
[5] Paulo
em sua carta aos Romanos, 3.9-19, argumenta que todos os seres humanos são
igualmente pecadores e culpados perante seu Criador; isto está em harmonia com
o ensino de Jesus de que as mais variadas formas de pecados têm sua origem
comum no “coração”, isto é, no mais íntimo de cada ser humano (Marcos 7.21-23).
[6]
Essa justificativa para a maldade é recorrente nas novelas da Globo, cujos
vilões constantemente apresentam sinais de loucura no final da trama.
Excelente!
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